A justiça como ideal “quase morto”
Cláudia de Marchi[1]
Escrevo em estado de choque que, todavia não me faz perder a razão, afinal, ser brasileiro nesta época de corrupção aberrante, escândalos constantes, e da prostração pública diante do absurdo das ocorrências do mundo político e de acontecimentos trágicos e violentos que merecem atenção, enfim, frente ao caos que o País esta beirando (na melhor das hipóteses, em um dia mais pessimista poderia dizer que já esta inserido) exige uma certa complacência psíquica que torna nossos “choques” amenos, por serem, praticamente, rotineiros.
Pois bem, meu choque do momento foi com a decisão da 1ª Câmara Criminal de nosso Tribunal de Justiça ao negar Habeas Corpus impetrado por um casal residente em Porto Alegre em que pediam a inibição de eventual responsabilização penal e liminarmente a “liberação” para a consecução de uma “interrupção terapêutica da gestação de feto com cinco meses com diagnóstico de ausência de calota craniana e dos hemisférios cerebrais – anencefalia.”[2]. O juiz da 1ª Vara do Júri da capital, Luis Felipe Paim Fernandes, negou a autorização para a prática do aborto, motivo pelo qual o procurador do casal ingressou com o mencionado Habeas Corpus.
Não sou médica e não intento discorrer sobre os efeitos da anencefalia, sobre a existência ou não da vida do feto. A grande maioria das pessoas tem noção do que seja, enfim os anencéfalos não possuem grande parte do cérebro, não tendo a pele que deveria cobrir seu crânio na zona cerebral anterior, nem os hemisférios cerebrais tendo expostos seu tecido nervoso e fibrótico. Basta pesquisar a respeito do tema, que se verá quadros horríveis que, com o perdão da franqueza, repugna ao estômago de qualquer individuo alheio à medicina.
Enfim, os fetos anencéfalos ou morrem no período neonatal em mais de 50% dos casos, ou, se chegarem a nascer a sobrevida é por pouquíssimo tempo[3], enfim, após a descoberta do mal de seu filho a gestante passa a conviver com a certeza de que esta gerando uma vida que não irá existir em pouco tempo, ou, na opinião de alguns, sequer existe, afinal, onde esta a personalidade humana em “algo” sem cérebro, sem, sequer ter a seu favor a possibilidade de existir, de viver dignamente, enfim? Se a única certeza da vida a partir do momento em que nascemos é que um dia iremos morrer, para os anencéfalos (que sequer podem pensar) esta certeza é comprovada, sendo que, na maioria dos casos nem chegam a “nascer” (entendido o termo como “sair da barriga da mãe com vida”).
A liminar foi indeferida pelo desembargador Roque Miguel Frank que apreciou o mérito do Habeas nesta quarta-feira dia 25 de julho. O relator do acórdão Desembargador Ivan Leomar Bruxel relatou que “em 14 de junho foi realizada ecografia obstétrica que concluiu pela “gestação compatível com aproximadamente 15 semanas de evolução de acordo com exame prévio”; e com a seguinte observação: ‘ Na revisão da anatomia fetal não se observa presença de calota craniana e dos hemisférios cerebrais (Anencefalia)’ .
Quem já viu uma foto de criança anencéfala se espanta ao ver que a cabeça é aberta, não existe pele tapando o que ali esta ausente. É algo triste, lamentável. Penso, pois, nestes pais, mais especificamente na mulher, na mãe que terá que carregar dentro de si uma criança praticamente sem vida. Será que os julgadores que atuaram no processo, do juiz aos desembargadores possuem o mínimo de sensibilidade racional para pensar na dor desta mulher? Em seus traumas, abalos psíquicos, agonia e tristeza? Creio que não, na verdade, infelizmente, em meu ponto de vista tal decisão é irracional, ilógica e aberrante. Existem pessoas com cérebro, saúde e mente, mas que, certamente, não concatenam suas emoções, não conseguindo exercer a chamada compaixão, consubstanciada no nobre gesto do “colocar-se” no lugar do outro.
Ah, mas pensou-se na criança. Na vida, (desculpem-me as palavras diretas), sem vida. Na vida sem pensamento, na vida sem cérebro, na pseudovida de um ser que, em pouco tempo e, provavelmente dentro de sua mãe, deixará de existir. Nascerá morto. A medicina é assertiva nesses casos sendo que médicos do Hospital das Clínicas colocaram-se à disposição para realizar a interrupção terapêutica da gestação que, iria, inclusive, afastar o risco à mãe que possui o dobro de líquido amniótico considerado normal em seu ventre. Mas, com tal decisão os médicos e a gestante incorreriam em crime se agirem. A Justiça gaúcha deu seu “parecer”.
Justiça? Pergunto-me, aonde? Como advogada costumo apiedar-me dos leigos que crêem na Justiça, que chamam juizes, advogados e desembargadores de “doutores” como se fossem seres superiores, mais sapientes, mais corretos. São humanos, portanto errantes. Os advogados postulam, criam teses, argumentam, em sua linda tarefa de procurar a efetivação de direitos, os juizes julgam de acordo com o que os patronos das causas lhes levam. São pessoas normais, e sujeitas a várias influencias, inclusive à convicções morais e religiosas. Aliás, nossa sociedade é permeada pela influência da Santa (?) Igreja Católica e seus dogmas diversos.
Creio, no entanto, que em muitos casos, para ser justo o Direito e a Lei devem se afastar da religião. Falo isso em relação ao controle de natalidade, e, também em relação ao aborto. Todavia, no caso de fetos anencéfalos, creio que até mesmo os católicos mais fervorosos devem colocar em cheque seus arraigados valores.
Resta-me uma pequena alegria por saber que não foi unânime a decisão tendo voto a favor da interrupção da gestação proferido pelo Desembargador Marcel Esquivel Hoppe, que citou voto do Desembargador Manuel José Martinez Lucas, em processo julgado em abril de 2003 (70006088090), tendo afirmado que não vislumbrou razão jurídica relevante para desacolher a pretensão do casal.
De resto, sobra a decepção com tal decisão e um profundo pesar que me faz, em especial, por ser mulher, sentir uma profunda tristeza, e, porque não dizer, uma vontade de chorar pela mãe que até o presente momento não conseguiu seu intento e que, provavelmente terá que levar sua gestação adiante na certeza de que de seu ventre não sairá uma bela criança chorando, quiçá, isto sim, um ser de cabecinha exposta e morto, ou, talvez quase morto. Quase morto como nossa Justiça. Minhas condolências nobre e corajosa mulher. Minha lástima ao povo que ainda espera encontrar justiça nas decisões do Judiciário.
[1] Advogada e especialista em Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
[2] Transcrito da notícia publicada no dia 27 de julho de 2007 no endereço eletrônico: www.tj.rs.gov.br .
[3]http://64.233.169.104/search?q=cache:eTy082qqs_AJ:www.usp.br/nemge/textos_relacoes_juridicas/anencefalia_silvafranco.pdf+anencefalia+e+efeito&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=9&gl=br.