Sobre o verdadeiro pecado!

Sobre o verdadeiro pecado!
"O primeiro pecado da humanidade foi a fé; a primeira virtude foi a dúvida." Carl Sagan

sábado, 3 de julho de 2010

O TEXTO ABAIXO FOI ESCRITO EM PASSO FUNDO NO ANO DE 2004.


As pernas

Eu andava pela rua, dia quente, seguia no limite entre o desânimo e a alegria, pernas cansadas, corpo doido, e a mente pedindo descanso, clamando por uma música boa, um sofá aconchegante e um pouco de silêncio. Em uma esquina vejo duas idosas, duas velhinhas na faixa dos 70 anos que conversavam animadamente.
Esqueci de meu cansaço, de minha gula, de meus desejos ao olhar para as pernas daquelas senhoras. Eu estava de saia, e reclamava para mim mesma quão doidas estavam minhas (ainda) rígidas coxas pelo excesso de atividade física. Eu e meu corpo de 22 anos, eu e minha alma, que sabe de muitas coisas para pouca idade, e desconhecem tantas outras por ter pouca vida, por ter poucas passagens na vida.
Aquelas pernas que vi, me fizeram pensar. Pernas magras, contudo inchadas, varizes e veias à mostra. Pernas que por tantos lugares passaram, que testemunharam muitos risos, muitas lágrimas, muita morte, muita vida, muito amor, muita desilusão.
Pernas que já não são belas, nem lisas, como os rostos de suas donas, que a beleza da juventude há muito tempo perderam, mas trazem, agora, a beleza da alma de quem muito viveu, e, espero muito tenha aprendido, afinal, nem sempre a idade condiz com a sabedoria, nem sempre é sinônimo de maturidade, e nem sempre as pessoas aprendem e crescem com os anos, muitos se revoltam, e não aceitam que o envelhecimento deteriora o corpo e aprimora a alma.
É sábio quem envelhece com orgulho, quem sabe que, com as rugas, as manchas na pele, as varizes nas pernas, o inchaço nos pés, vem a alegria de ver os netos crescerem, de ver o mundo evoluir, e quem sabe ser bisavó em um momento inusitado, porque a neta empolgada no prazer esqueceu da responsabilidade.Para a jovem será desesperador, mas, para a avó que não é tão bela, mas muito sábia, é só um fato inesperado (viu tantos assim na vida!), que não terminará com a existência de ninguém, apenas trará outra vida para este planeta, e mudará o rumo de alguns planos, que jamais deverão ser esquecidos.
O velho viveu muito, sentiu muito, sofreu muito, e também foi feliz. Sabe que a vida é um trem cujos trilhos que determinam o caminho são invisíveis, e as paisagens que se vê pela janela são inusitadas, não podem ser previstas, mas o tempo não se esgota em uma imagem apenas, os trilhos invisíveis levam o trem por caminhos diversos e surpreendentes.
Não podemos pensar que nosso valor esta no corpo, no vigor físico, na força, na pele lisa, no cabelo brilhoso de cor uniforme, nos seios firmes, na bunda dura, nos braços definidos, no sorriso inteiro e branco, que não implica em rugas nos olhos. Tudo isso é bom, é bonito, é atraente, mas o tempo leva com velocidade rápida.
Os anos passam, envelhecemos. Envelhece bem, com equilíbrio mental e alegria aquele que não se prendeu a sua matéria jovial.Os anos levam um pouco de nossa beleza, mas se soubermos viver veremos que ele trouxe cor, brilho,e luz à nossa alma, que na contabilidade do fim da vida é tida como "aquilo que somos".E se bem vivermos será bela, será grande.
O homem não será julgado pela beleza que teve, pela força dos braços, pelas conquistas fátuas que sua beleza propiciou, o homem será lembrado pelo bem que fez, pelo tempo que devotou ao trabalho, pela intensidade e sinceridade do amor que devotou àquela que julgou que merecia seu profundo sentimento, e pela dedicação que teve aos filhos que com ela teve, e o valor que deu à família que construiu.
Minhas pernas, que, neste dia carregavam meu corpo jovem, preocupado com o futuro, sedento por realizações, dirigiam minha alma ambiciosa, sonhadora e apaixonada, ao cruzar com aquelas pernas feias, fizeram-me pensar quão pouco elas significam, quão pouco vivi, e quão pouco sou. Mas um dia, eu sei, serei muito, serei melhor, serei menos bela, menos forte, mas mais serena, mais vivida, e mais sábia, e na contabilidade do fim da minha vida quero que seja dito, pelo dono dos trilhos invisíveis que guiaram o trem que viajei: "Esta alma viveu muito e intensamente, teve êxito em sua busca, perseverou nas dificuldades. É grandiosa, é forte, alegre. Esta alma é bela".

Cláudia de Marchi

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