Caso Bernardo e a “justiça” que enxerga.
Eu ouvi a gravação feita pelo Leandro Boldrini da
conversa (briga) entre a madrasta sociopata e o menino Bernardo. Confesso que
se eu tivesse visto a foto ou um vídeo de um ser humano estripado, meu estômago
teria se remexido mesmo. Aquilo dá náusea! E, digo, não só pela atitude da
psicopata e do pai omisso e gélido, mas pela responsabilidade social, judicial
especificamente.
Os vizinhos chamaram a polícia, o menino procurou o
Judiciário e nada ocorreu. Claro que não! Mas se fosse família pobre, de vila,
uma criança gritando “socorro” e procurando o Ministério Público (na verdade,
nem precisaria procurar) seria mais que suficiente para possível suspensão do
“poder familiar”, no mínimo! É esse tipo de coisa que me faz mal na advocacia,
em qualquer área.
Existe um tratamento diferente, nove em dez vezes,
entre pessoas com status e pessoas desprovidas dele. A justiça só é “cega”,
para que a balança não penda para lado algum, na imagem da deusa romana da
justiça “Iustitia”. A verdade é que a justiça enxerga, sobretudo estereótipos:
o rico, o pobre, o branco, o preto, a prostituta, a “doutora”.
Impossível, pois, requerer que aquilo que habita no
inconsciente da coletividade seja totalmente retirado de decisões judiciais,
mas deveria. A luta pela justiça requer a luta contra tendências humanas de
“simpatia”, de “privilégios” entre uma ou outra classe, entre uma ou outra
pessoa. A lei é a mesma e a todos deve se aplicar. Assim o Código Civil, assim
o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Por que estou falando de falha judicial e não do
pai omisso? Porque, se o menino continuou com um pai que, em meio a uma briga
terrível em que o filho é, visivelmente, ameaçado de morte, fica inerte e não o
defende contra os disparates da mulher psiquicamente perturbada, é porque o
Judiciário lhe deu uma “chance”. Imerecida chance!
Bastava que se tivesse feito entrevista com
familiares, com a criança, professoras e vizinhos, em especial numa cidade
pequena como Três Passos/RS! O menino Bernardo foi vítima da ausência de sorte
em nascer com um pai feito de gelo e foi vítima do “sistema judiciário” que,
não raras vezes, beneficia os mais poderosos.
O homem de gelo, no caso, é bem sucedido, casado,
respeitado na pequena comunidade. A sua esposa, da mesma forma, afinal, ainda
vivemos num mundo em que a mulher é conceituada de acordo com o marido que tem.
Então, eles eram a “nata” da cidade interiorana.
E, como “nata”, ficaram por cima até quando o leite
azedou. Eu vejo, na advocacia, casos e mais casos, onde os pais são pormenorizadamente
investigados, por razões tolas, por denúncias de vizinhos, sem que a criança
tenha chegado a tal ponto de desespero de clamar por socorro.
Mas não foi o que ocorreu na comarca rio-grandense.
Teria ocorrido, obviamente, se a família morasse numa casa com menos de 70 mº,
localizada no subúrbio do município e tivessem mais uns três ou quatro filhos. Como
normalmente ocorre, ainda quando nem existe tanta necessidade.
A justiça, meu caro, condena a pobreza com uma
facilidade muito maior do que à riqueza. É fácil pegar e prender gente pobre, é
fácil, porque eles não podem contratar um bom advogado. Da mesma forma, que é
fácil separar criança pobre do pai operário e da mãe lavadeira, mas quando a situação
muda, ah, daí fica difícil, quase impossível!
O caso Bernardo, trouxe, em minha modesta opinião,
uma revelação infame: se ele fosse de família pobre, estaria vivo. Normalmente,
em todas as situações trágicas que corriqueiramente vemos, é o oposto que ocorre,
não quando se é filho de gente fria, ruim, porém abastada.
O fato é que, se o menino fosse afrodescendente e
pobre, provavelmente não teria tido tal fim. Estaria em família substituta, em
algum orfanato, vivendo em possível desamor, mas, quiçá, sem ser ameaçado e,
sobretudo, estaria vivo, saudável. Saber disso me causa um mal estar enorme,
mas faz pensar. E quanto mais penso, mais frustrada e indignada eu fico.
Cláudia de Marchi
Sorriso/MT, 29 de agosto de 2014.
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